A ferida de uma solidão imensa
Toda a poesia verdadeira, como o Canto Noturno de um Pastor Errante da Ásia, de Leopardi, tal como toda a obra de arte digna deste nome, faz-nos sentir como uma ferida, reabre uma ferida que julgávamos curada apenas porque tínhamos conseguido distrair-nos dela, como se não existisse em nós. Os génios poéticos da humanidade, como os profetas do Antigo Testamento, não curam a alma, mas revelam a sua ferida.
O ponto de consciência essencial de Leopardi consiste precisamente em perguntar-se o que ele é, depois de sentir que carrega dentro de si a ferida de uma "solidão imensa".
O que significa uma solidão imensa? A imagem poética é maravilhosa, mas o que significa? O que é a solidão e como pode ser "imensa"?
Leopardi identifica-se com um pastor errante da Ásia, que vagueia à noite com as suas ovelhas pelos espaços de imensas estepes ao luar.
Quando li que Leopardi escreveu este poema depois de ler a história de um explorador da região de Quirguízia, na Ásia Central, tive um sobressalto. Porque foi precisamente a essa região, que outrora se chamou Turquestão e incluía a região dos quirguizes, uzbeques e tajiques, que em 1886 chegou, depois de uma viagem de navio de Veneza e Istambul, depois no Mar Negro, e depois de comboio até Bacu, depois no Mar Cáspio até à cidade de Krasnovodsk, um rapaz de 17 anos que cresceu numa pequena aldeia na Suíça de língua italiana, acompanhado pelo irmão e por um primo mais velhos. Tinham sido contratados para participar na construção de um troço da ferrovia Transcáspia, da cidade de Krasnovodsk a Tachkent, uma obra colossal encomendada pelo czar Alexandre II.
Aquele rapaz era o meu bisavô materno, Giovanni. Sempre pensei nesta sua experiência, naqueles imensos espaços da Ásia, como uma espécie de fonte secreta de uma sensibilidade religiosa e poética, inegavelmente presente no ramo da minha família que dele descende e, mesmo sem o ter conhecido, sempre senti o seu coração particularmente próximo do meu, quando me descubro em tensão para o infinito, nostálgico do absoluto, sedento de Deus e de beleza. E o poema de Leopardi é como se descrevesse estes sentimentos e a razão desta profunda sintonia humana.
Experimentei um pouco este tipo de imensidão ao atravessar o deserto nevado de Gobi, na Mongólia, em fevereiro passado. Ou então, vejo estes espaços imensos quando sobrevoo outras regiões da Ásia, da África, do Brasil, mas também os Alpes suíços, porque a Suíça é um país pequeno, sem mar e sem grandes planícies, mas onde o sentido de imensidão é garantido pelas montanhas. Estes espaços imensos, quando os atravessamos por terra e à noite, são como que amplificados pela abóbada celeste. A imensidão torna-se então tridimensional, enche de espanto e de um certo temor.
Mas será esta a imensidão da solidão? Não, porque a imensidão geográfica, astrofísica, é apenas espaço-temporal, certamente real, mas no fundo apenas simbólica.
A imensidão da solidão é, pelo contrário, a imensidão de uma consciência, é uma consciência do infinito, uma consciência mais vasta do que a realidade material, porque mesmo o universo que simboliza o infinito, na realidade, é finito. A consciência do infinito, pelo contrário, é infinita, ou melhor, é a consciência real do infinito; a consciência do imenso é imensa; a consciência do eterno é eterna!
No espanto diante da imensidão do universo estrelado, ou da imensa beleza da Divina Comédia de Dante, ou do olhar da Virgem de Vladimir, ou de uma sinfonia de Beethoven, ou do rosto de uma criança, de um idoso ..., o homem descobre não tanto a imensidão da criação, mas a imensidão do seu próprio coração, a imensidão da consciência do próprio eu.
A poesia de Leopardi combina a imensa beleza da realidade contemplada com a imensa beleza do eu que a apreende. Talvez seja precisamente esta a genialidade, o carisma, das grandes almas artísticas da humanidade: expressar na sua obra, seja ela qual for, a imensidão da realidade, refletindo-a e amplificando-a na imensidão do eu que a contempla. E, talvez por isso, digo eu, os maiores artistas são os místicos, aqueles que combinam a realidade verdadeiramente infinita e imensa de Deus com o imenso vazio consciente de si e capaz de acolher o divino como é o coração humano.
O verdadeiro artista, como o místico, é sempre contemplativo, isto é, capaz de fazer do seu coração o “templum” com que talha na realidade uma parte do céu onde lê os sinais do infinito como destino no qual refletir-se, conhecer-se, encontrar a sua própria medida de imensidão, isto é, a sua própria medida sem medida.
É precisamente isto que Leopardi expressa, ou melhor: é precisamente isto que acontece a Leopardi, a experiência que faz. A expressão artística, a poesia, é esta capacidade de cada homem de descobrir na realidade o sinal da imensidão que desperta no coração o sentido da sua imensidão. E Leopardi é tão verdadeiro com sua humanidade que percebe, como dizia, que esta imensidão do coração é uma ferida, é uma solidão imensa, dolorosa, em última análise, insuportável. O sentimento de solidão imensa, justamente quando é despertado por uma imensa beleza, é insuportável, tanto que todo o poema de Leopardi confessa que viver com essa consciência leva a desejar a morte, a amaldiçoar o nascimento, a existência. O longo poema termina com as tristes palavras: “Funesto seja para quem nasce o dia do nascimento”.
"Não é bom que o homem esteja só"
É como se Leopardi, ao fazer-se pastor errante que vagueia pelos espaços da realidade, guiado pelo movimento, aparecimento e desaparecimento da lua, tenha sido levado a um ponto de absoluta originalidade do ser humano. Porque quando ele pergunta: "o que significa esta solidão imensa?", no fundo, é precisamente aí que o poeta incrédulo se aproxima mais do coração de Deus. Porque Deus, no princípio, logo depois de ter criado Adão, deteve-se pensativo, preocupado, diante da sua obra humana, o ponto culminante de toda a criação, o ponto culminante também da criação das estrelas, do sol e da lua, dos mares e das montanhas, e disse a si mesmo, como um artista que não está satisfeito com a sua obra: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Deus já tinha dado tudo ao homem: toda a criação, um corpo formado de terra e um sopro de vida, nele diretamente insuflado por Deus. Mas é como se Deus tivesse percebido que, precisamente diante de todo este universo criado, o homem sentia uma “solidão imensa” cuja natureza não compreendia, um pouco como acontece a uma criança quando, pela primeira vez, se sente abandonada pela mãe, quando esta a deixa sozinha, ainda que por pouco tempo.
Observamos que, no relato do Génesis, é como se nem Deus compreendesse o mistério desta solidão porque, para a consolar, cria primeiro para o homem toda a espécie de animais selvagens e de aves e apresenta-os ao homem para lhes dar um nome, mas neles “o homem não encontrou auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,20). Só chegado a este ponto é que Deus cria a mulher, na qual Adão reconhece uma correspondência à sua solidão.
Mas não é sobre isto que gostaria de me deter, mas sim sobre aquele momento em que o homem sente a sua solidão e Deus se apercebe da existência desta ferida na sua criatura. “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Parece-nos estar a ouvir certos diálogos entre pais quando percebem que um de seus filhos está passar por um momento crítico na adolescência e não sabem o que fazer para o ajudar. Pela primeira vez, a Bíblia fala disto como uma emoção compassiva do coração de Deus diante da criatura humana. Deus dá-se conta de que, ao criar o homem à sua imagem, colocou um anseio infinito num vaso de barro, e Deus treme diante desta obra sublime e frágil ao mesmo tempo. Deus que é Trindade, Deus que é Comunhão por essência, não conhecia a solidão. Para Deus, a solidão não existe. E, na realidade, não existe nem mesmo para Adão, porque desde que Deus o criou nunca o deixou sozinho. O sopro de vida que Deus colocou nele (cf. Gn 2,7) liga-o ontologicamente ao Criador, fá-lo respirar na sua relação com Aquele que o ama. Mas chega este estranho momento, tão dramático como a adolescência, em que Adão, ao mesmo tempo que recebe de Deus toda a criação, mostra ao seu Criador que, enquanto criatura, lhe falta alguma coisa: falta-lhe “uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,20). Adão ainda não sabe que lhe falta uma mulher, uma alteridade correspondente à sua humanidade. Nem mesmo Deus parece saber o que falta ao homem, por isso, é como se Deus e Adão estivessem ambos diante de uma realidade nova, misteriosa, desconhecida para ambos: a solidão, precisamente. Já naquele momento, Deus e o homem poderiam ter expressado o verso de Leopardi: “O que significa esta solidão imensa?”
Que mistério este momento de suspensão na solidão, no centro do processo da criação, não só do homem, mas de todo o universo. É claro que virá também o momento do pecado, do castigo, do distanciamento do paraíso terrestre e, portanto, da familiaridade com Deus. Virá o momento em que Caim matará o seu irmão Abel e, assim, a morte, consequência do pecado, começará a acontecer como homicídio, fruto da inveja e do ódio. Com tudo isto, a “solidão imensa” será cada vez mais carregada de dor, tristeza, miséria e morte. Mas penso que é importante não esquecer que, no primeiro alvorecer desta realidade, ela foi um mistério partilhado entre Deus e o homem. Deus viu na sua criatura este vazio, esta falta profunda, tão profunda que Deus quis respeitá-la: não a quis preencher conSigo mesmo, como teria podido fazer. Será que ao homem não teria bastado o amor infinito do Criador? Certamente! Mas Deus retirou-se, por assim dizer, porque não queria que a comunhão de Adão com Ele fosse uma obrigação, um espaço garantido, automático. Deus não quis ser a satisfação obrigatória da solidão de Adão.
Criados para se realizarem no amor
Este é um ponto essencial para compreender o mistério do homem. Porque ao retirar-se, Deus, renunciando a impor-se como a única satisfação possível da solidão do coração humano, criou para a liberdade humana, já criada, já desafiada pela proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, a vocação e o destino de se realizar no amor (cf. Gn 2,16-17).
Eva não podia preencher a solidão imensa do coração de Adão, nem Adão a de Eva. Mas Deus criou, no espaço das relações humanas que nasceram com a criação de Eva, o caminho do livre reconhecimento de que só em Deus a alma encontra o repouso da comunhão que não morre. A solidão não é um espaço tranquilo: é um campo de batalha, a subida de uma montanha íngreme e rochosa, e toda a espiritualidade monástica dá testemunho disso. Quando Santo Agostinho escreveu que “o nosso coração está inquieto enquanto não descansar” em Deus (As Confissões, I,1,1), no fundo, ele entendeu que a solidão coincide com a inquietação. A inquietação é o sentimento da solidão.
Repito que Deus poderia ter tranquilizado Adão imediatamente, consolá-lo nos seus próprios braços, enchê-lo de satisfações por ser como um filho para o Criador, por ser único e preferido por Ele. Mas não: Deus, ao criar a mulher, manda o homem viver esta solidão nas relações humanas, para que, através delas, possa voltar a reconhecer com liberdade que a sua solidão não é apenas vazio, mas é espaço, capacidade de acolher um amor infinito, aquele que só encontra reciprocidade no Coração de Deus. O Salmo 63 descreve este mistério de solidão definindo-o como um precipício, um abismo: “É um abismo o coração de cada homem” (Sl 63,7).
Leopardi descreve tudo isto, destacando o aspeto dramático de uma solidão que ele percebe como insuperável, como algo que torna a vida um mal – “A vida é má para mim” – e a morte um destino que marca todos os seres vivos desde o nascimento. É sobre esta constatação sem esperança que Leopardi encerra o seu poema, como um voo de uma águia que, depois de ter vagueado no infinito, acaba no fundo de um poço:
"Seja qual for a forma,
a condição, no covil ou no berço,
funesto seja para quem nasce o dia do nascimento"
Leopardi não resolve o problema da solidão e, portanto, do "eu", mas a sua sensibilidade humana e poética dá-nos um grande dom: o de delinear com crua clareza qual é o problema do homem, qual é o problema do nosso coração. Leopardi, como outros grandes espíritos, compreendeu que a solidão não é um dos problemas do homem, mas o problema humano em absoluto. Se não descermos como ele até ao fundo do problema humano, é como se todo o caminho da vida estivesse desorientado, falseado. Detendo-se diante da “solidão imensa" ao perguntar "e eu, o que sou?", Leopardi, pelo menos naquele momento, pelo menos neste poema, diz-nos a verdade, a verdade sobre nós mesmos que poderemos definir como negativa, tenebrosa, mas sem a qual não podemos apreender a verdade positiva e luminosa que Cristo veio revelar ao mundo. Qual? Que Deus é amor recíproco e que o Ser é comunhão!
Leopardi coloca a questão do eu de uma forma tão verdadeira e crua que não se define a priori como "alguém", um ser pessoal ("E eu quem sou?"), mas um "algo", um quid ("E eu o que sou?"), uma realidade ainda indefinida. O que talvez ele não compreenda, por isso é como se parasse ali, pois, em vez de se interrogar sobre o "eu", o homem é feito para viver o "eu" como pergunta. O "eu" é pergunta, o "eu" é a pergunta que não se responde, mas que permanece em aberto até ser alcançada pela única resposta que lhe corresponde: um TU abissal, eterno, infinito. Aqueles que nos rodeiam, mesmo os que amamos, como a pessoa mais querida, não respondem à pergunta que o “eu" é. O outro ser humano, como Eva para Adão, como Abel para Caim, não é a resposta à pergunta que o “eu" é. O outro acrescenta à minha pergunta a pergunta que ele é. O outro cava comigo o abismo da questão. Por esta razão, o outro muitas vezes torna-se um tormento para o eu que se agarra a ele com uma pretensão de correspondência total. Mas, se reconhecermos juntos que a resposta é um TU infinito, a pergunta que o outro é torna-se uma amplificação saudável e poderosa da pergunta que eu sou e, portanto, da aceitação grata da resposta do TU infinito que vem para nos dar satisfação sem fim.
A correspondência mais profunda entre o homem e a mulher, entre amigos, entre irmãos e irmãs de uma comunidade, não está em saber preencher a solidão imensa do coração uns pelos outros, mas em vivê-la juntos para oferecer ao Senhor um espaço ainda mais imenso onde venha a encher-nos de Si.
Neste Meeting Lisboa há exposições e conferências muito explícitas sobre este ponto crucial do humano e quando o TU de Deus, em Cristo, vem realizar o seu dramático anseio.
Basta pensar em Takashi Nagai quando, após a explosão da bomba atómica em Nagasaki, se viu a caminhar na terra deserta em que a sua cidade se tinha tornado, desintegrando-se em poucos momentos. Ele tinha acabado de encontrar o montinho de ossos calcinados da sua mulher Midori, entre as cinzas da sua casa. Sentiu uma solidão bem mais imensa do que a de Adão ou de Leopardi, porque estes ansiavam por um "não estar só" que pudesse encher os seus corações perturbados pela beleza do universo. Em vez disso, Nagai estava sozinho após a aniquilação do universo à sua volta. Para ele, Eva não ia ser criada: estava perdida, aniquilada. A solidão, para ele, era como a cegueira de alguém que perdeu a visão depois de ter visto a luz. Mas também aqui, como em Leopardi, percebemos que estas pessoas não têm uma experiência estranha ao nosso coração: fazem a experiência do nosso coração até ao fim. Recordam-nos que “é um abismo o coração de cada homem” (Sl 63,7); e este precipício, este abismo sou eu, é a minha solidão, ainda que muitas vezes, como uma besta, eu não o perceba, nem nunca sinta o seu tormento.
Uma voz no deserto
Mas a experiência de Nagai, como a de muitos outros, mostra-nos um caminho que vai para lá da solidão imensa. Leopardi é como Moisés, que vislumbra de longe a Terra Prometida, mas não entra nela. Nagai sim, e por isso a sua experiência é, para nós, como foi para Dante a passagem de ser guiado por Virgílio a ser guiado por Beatriz: o primeiro levou-o ao fundo do mistério do abismo do coração humano; Beatriz encaminha-o para o mistério que só pode encher este abismo de solidão imensa, o mistério que é “o amor que move o sol e as outras estrelas” (Divina Comédia, Paraíso, XXXIII, 146) e que é o mistério da Comunhão de Deus, com Deus e em Deus.
Mergulhado no desespero e na fraqueza total do corpo e da alma, Takashi Nagai perde a consciência, no meio das cinzas brancas da cidade pulverizada pela bomba.
Nesta noite de solidão imensa, Nagai acorda ao amanhecer, como se uma Presença o tocasse. Ele vê aparecer no Céu o planeta Vénus, a Estrela da Manhã, símbolo da Virgem Maria. Então, Takashi ajoelha-se sobre as cinzas e reza o terço. Ele não está sozinho com a sua solidão: une-a à solidão da Mãe de toda a compaixão, a Mãe que, mais do que qualquer criatura humana, sofreu até ao fim, todo o abismo possível da solidão humana, junto da Cruz, com a morte do Filho. Tagai escreve: «Estava tudo em silêncio. Não se ouvia nenhum som nem sinal de vida na paisagem atómica. O céu a leste tornava-se cada vez mais luminoso. Parecia que a luz da esperança estava a chegar para iluminar as trevas do desespero. Ele ficou ali à espera, enquanto o seu coração se aclarava. No silêncio, ouviu uma voz potente sussurrar: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar” (Mt 24,35). Era a voz de Jesus."» (Aquilo Que Nunca Morre, pág. 344)
As estrelas que tinham cavado em Leopardi uma sensação de solidão imensa e muda como a lua, em Nagai parecem transmitir uma resposta à grande pergunta: "E eu, o que sou no fundo desta aniquilação, deste desespero?" A resposta não está tanto no que a voz lhe diz. A resposta é a voz, Alguém que fala com ele ali mesmo onde não resta ninguém. Existe uma Presença amiga, "que nunca morre", que te fala nas profundezas da solidão imensa.
Vem-me à mente outra pessoa que caiu nas profundezas da solidão humana por causa da sua mesquinhez e da traição dos outros: a mulher Samaritana, absolutamente sozinha, apesar dos seis homens que já a possuíram (cf. Jo 4,1-42). No fundo do poço da sua solidão, depara-se com uma Presença que inicialmente lhe parece hostil, como todos os homens que a exploraram, mas lentamente descobre que oferece, ao seu coração ferido, uma companhia, uma amizade, absolutamente gratuita, casta, que lhe dá tudo sem exigir nada dela, a não ser aquele estranho sentimento de amor gratuito, casto, virgem, que a mulher sente jorrar do seu coração árido e reduzido a um poço de ossos e podridão. E, quando lhe diz que espera o Messias, esta Presença responde-lhe o que Nagai percebeu naquela terrível manhã: o Messias “sou eu que te falo” (Jo 4,26). Aquele que esperas, aquele em quem já não esperas, que te parece um sonho, uma ilusão, um engano, "sou eu que estou a falar contigo".
Toda a vida e o coração da Samaritana, como o de Nagai, como o de Leopardi, como o de todo homem, grita no vazio: "E eu, o que sou?" E as estrelas nem sequer fazem eco desta pergunta, pelo contrário, absorvem-na na sua imensidão, de modo que a questão fundamental do coração como que se vai perdendo nos espaços infinitos. E eu fico não apenas mais só, mas mudo e em silêncio, como se fosse uma pedra no deserto. E eis que uma mulher, que vai ao meio-dia tirar água do poço para não encontrar ninguém, se depara com um homem cansado, suado, empoeirado que lhe pede de beber. Nada nela a preparava para este encontro, a não ser tudo nela. Sim, tudo nela preparou este encontro, todo o bem e o mal, toda a dignidade e toda a mesquinhez e o pecado da sua vida preparava este encontro. De repente, o seu "eu" que se pergunta "mas o que sou?", "o que sou?", "que objeto sou, se todos me usam como tal?” De repente o seu "eu" sente-se definido por um outro "Eu" que se faz "TU" para ela, um Tu que lhe fala.
A Samaritana faz nada menos do que a experiência de Moisés no Sinai, quando Deus pela primeira vez se define diante do homem: «Deus disse a Moisés: “Eu sou aquele que sou!” E acrescentou: “Assim dirás aos filhos de Israel: ‘Eu sou’ enviou-me a vós!”. Deus disse ainda a Moisés: "Assim dirás aos filhos de Israel: ‘O Senhor, Deus dos vossos pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e de Jacob, enviou-me a vós: este é o meu nome para sempre; o meu memorial de geração em geração’."» (Ex 3,14-15)
Porque a resposta de Jesus à Samaritana, “sou eu que te falo”, pode ser lida em grego: “Eu sou, o que fala para ti”. A teofania de Deus, “Eu sou”, é identificada por Jesus no diálogo que estabelece com ela, na relação em que Ele lhe fala. É como se dissesse: Eu sou o Senhor que te dá a minha comunhão, a minha amizade. Eu sou Aquele que te criou, que vem para preencher a imensa e caótica solidão do teu coração.
Um novo "eu"
A mulher corre em direção à cidade para anunciar a todos o seu extraordinário encontro com Jesus, e como Ele a compreendeu plenamente, como ninguém nunca a olhou, a ouviu e a compreendeu: «Então a mulher deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse àquela gente: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Messias?"» (Jo 4,28-29).
O encontro mudou-a tanto que quase não se dá conta de que é uma mulher diferente, que tem uma relação inédita com o seu "eu": já não tem vergonha de si própria, já não precisa de se esconder, já não é definida pelo mal que fez a si própria e pelo mal que os homens lhe fizeram. É definida por um olhar, uma palavra, uma escuta, uma presença que a fazem sentir o seu eu mais imenso do que a solidão, mais imenso do que o nada caótico em que se encontrava, em que estava submersa e sufocada. Porque Deus lhe tinha falado, ela podia falar a todos, falar a todos sobre Ele. Já não espalhava uma solidão vergonhosa, mas uma amizade toda para ela e também toda para todos, porque agora até o seu eu não era só para ela, não era só ela: era um eu verdadeiramente imenso, sem se fechar aos outros. Ela já não se pergunta, como Leopardi, com uma tristeza sombria: "E eu, o que sou?", sentindo-se oprimida pelo imenso universo, oprimida também pela beleza, pelo infinito. Não! Agora, a Samaritana pergunta-se “E eu, quem sou?”, com imenso e comovido espanto, como uma criança a quem sorriem a mãe e o pai; como um jovem a quem a mulher amada lhe disse: “Amo-te para sempre!”. Mas infinitamente mais do que estes exemplos fugazes da imensidão do eu. A Samaritana nunca deixará de se surpreender com o sentimento do "eu" que Jesus lhe deu em poucos instantes, em poucas palavras, como Maria Santíssima, como André, João, Pedro, como Nicodemos, Zaqueu, o ladrão arrependido, Maria Madalena...
O beato Guigo, cartuxo do século XII, escreve que o Senhor "vivifica [a alma] fazendo-a morrer maravilhosamente no esquecimento de si" (Sobre a Vida Contemplativa, VII)
Uma pessoa esquece-se da sua medida, ou de ser medida de tudo e, neste esquecimento de si, sente-se viva na alma, viva no coração, vivificada por um Outro, por Aquele que desde a origem deu vida à alma humana com o sopro misterioso da sua vida divina. É como se o homem pudesse sentir-se e dizer-se "eu" como Deus, como Cristo.
Deus nunca diz "eu sou" pensando apenas em si mesmo. Nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo dizem “eu” concebendo-se sozinhos. Para eles, não existe a definição do “eu” fora do “nós” da comunhão eterna que os une. O amor do Outro na Trindade é eterna e ontologicamente mais decisivo do que qualquer pensamento de si. Ninguém se esquece de si pelo outro, mais do que Deus.
Amados, amamos
Mas como transmitir ao nosso pobre e mesquinho "eu" esta identidade infinita, esta ativação da imagem e semelhança que nos permite, também a nós, dizer "eu" dentro de um "nós" de comunhão? Como é que Jesus transmitiu à Samaritana esta experiência e esta dilatação infinita do eu? Terá sido com raciocínios? Ou com considerações políticas e religiosas sobre quem era melhor entre judeus e samaritanos? Ou com a clarividência sobre o seu passado oculto? Não, não foi nada disto que libertou a mulher da sua concepção fechada de si, não foi isto que lhe abriu o coração, levando-a a esquecer-se de si mesma para pensar só em Jesus. Até à última palavra de Jesus, a mulher encontrava sempre escapatórias, não se deixava convencer. O verdadeiro salto de consciência e de experiência percebe-se no final, precisamente quando Jesus lhe disse: “Sou eu que te falo”.
Não foram as palavras que a convenceram. Só o amor a podia convencer, podia tomar o seu coração, libertá-lo e lançá-lo no dom de si. Não um amor que a colava a Jesus como ela se tinha colada aos seus homens. Ela nem sequer respondeu: saiu, como que projetada por uma força mais poderosa do que ela.
Que amor é capaz de libertar o eu da sua solidão imensa, projetando-o numa aventura de infinita comunhão?
Também com Takashi Nagai, como é possível que o seu "eu" caído no fundo do abismo da solidão mortal acorde e, ouvindo uma voz, a mesma voz de Jesus que ouviu a Samaritana, embora gravemente doente com leucemia, privado de tudo, comece uma vida heróica de doação, de amor universal, capaz de encontrar todos, ao ponto de bem-dizer Deus por ter escolhido o bairro cristão de Nagasaki, a sua catedral, a sua mulher, os seus amigos e ele mesmo, para os oferecer em holocausto como cordeiros para pôr fim à guerra mundial?
Uma frase de São Bernardo, que medito há anos, contém a resposta essencial: "Amati amamus, amantes amplius meremur amari – Amados, amamos, e amando merecemos ser mais amados" (Carta 107).
As duas primeiras palavras são suficientes: “Amati amamus – Amados, amamos”. Está tudo nestas duas palavras, está tudo de Deus e está tudo do homem. Deus Trindade poderia dizer de Si só isto: amados eternamente, amamos eternamente; amados infinitamente, amamos infinitamente. Tudo na Trindade é amar e ser amados, sem qualquer diferença entre um movimento e outro, numa coincidência, numa contemporaneidade total entre amar e ser amado, que no fundo é a natureza da eternidade, daquele instante de amor sem fim em que Deus vive, porque o amor em Deus é eterno, a circulação eterna do Amor infinito.
Ao criar-nos à sua imagem e semelhança, Deus inscreveu este mistério no nosso coração, nas nossas relações, como origem e realização, como verdade e beleza, como bondade, como sentido presente e eterno da vida, como vida da nossa vida, de cada vida.
Todos os santos, mesmo os não cristãos, viveram isto: um ser amado pelo Mistério irradiado da sua pessoa em amor universal, sem limites. E cada um de nós vive basicamente para isto: vive verdadeiramente se vive deixando-se amar por Deus ao ponto de O amar e amar os outros para se deixar amar cada vez mais por Deus.
É claro que nenhuma criatura humana, excepto a Virgem Imaculada, pode viver este mistério com perfeição, com totalidade, com gratuidade total. Mas Deus ama-nos com um amor misericordioso e, por isso, mesmo apesar da nossa adesão imperfeita a este mistério, Deus, ao amar-nos, preenche-a, completa-a, enche-a como as águas do oceano enchem todas as fendas do fundo do mar.
A solidão imensa que suscita no coração a dramática pergunta “E eu, o que sou?”, quando embate com o Rosto e a Palavra de Deus que, no encontro com Cristo, nos revelam o Amor infinito que nos faz e constitui, torna-se imediatamente comunhão tendencialmente com todos, mesmo com quem é teu inimigo, mesmo com quem te despreza como o povo da aldeia desprezava a Samaritana, ou os poderosos do mundo tinham desprezado Nagasaki e todas as vítimas da bomba atómica. Porque como Deus nos ama, como Cristo nos ama, é uma experiência infinita, é um acontecimento, um instante eterno, do qual nada pode ser mais forte, mais certo, mais verdadeiro, mais real.
"A tua graça vale mais do que a vida!", exclama o Salmo 62. O termo graça traduz aqui a palavra hebraica he'sed, que expressa o amor misericordioso e fiel de Deus. Este amor vale mais do que a vida, não no sentido em que a vida deve dissolver-se nele, mas porque só este amor é a derradeira consistência do eu, é o que impede o "eu" de se dissolver no sentimento de solidão imensa que, como expressa Leopardi, nos faz sentir perdidos num deserto que nos aniquila.
Cristo começou o seu ministério no deserto. Depois do Batismo, em que o Pai e a Pomba do Espírito revelaram todo o Amor amado e amante da Trindade – “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado” (Mt 3,17) – Jesus foi para o deserto, entrou na nossa “solidão imensa”, na qual o demónio nos tenta sempre a perceber e conceber a nossa vida como se ela não fosse amada por Deus e chamada a amar a Deus, sobre todas as coisas, e o próximo como nós mesmos somos amados por Deus (cf. Mt 4,1-11; 22,34-40).
Depois, começou a ir ao encontro da humanidade, amando todos até à morte e morte de cruz. No encontro com Ele revela-se aos corações, como ao coração da Samaritana, a verdadeira natureza do eu: ser amado para amar. Um eu que, encontrando Cristo, descobre que não está só, nem como origem, porque é Deus que o faz, nem como destino: a comunhão filial com Deus e comunhão fraterna com todos.
Se não se difunde o Evangelho de que nos podemos amar uns aos outros porque Deus nos ama, só resta ao mundo a lógica diabólica do ódio. Se a lógica do Evangelho é: “Amados, amamos e, amando, merecemos ser mais amados”, a lógica infernal do mundo, tal como é evidente hoje, poderia ser definida como: “Odiados, odiamos e, odiando, merecemos ser mais odiados”.
Encontro com Cristo na Igreja
Mas o que permite esta consciência e experiência do eu que o salva deste ódio e da opressora solidão imensa? Vimo-lo: é o encontro com Deus que se revela como Aquele que te ama eternamente e mendiga o teu amor para sempre. Ou seja, o encontro com Cristo.
Portanto, o grande problema da humanidade é que este encontro seja sempre possível, que um encontro com Jesus como o da Samaritana, de Pedro, de Zaqueu, do bom ladrão, seja possível para nós agora, para todos agora, em qualquer situação em que nos encontramos, em paz ou em guerra, na pobreza ou na riqueza, numa sociedade rural como numa sociedade urbana, num mundo real como num mundo virtual.
A única questão verdadeiramente interessante para o homem, interessante e vital, é unicamente poder encontrar realmente Cristo, mesmo que ninguém o pense, mesmo que ninguém o saiba, assim como a Samaritana não sabia antes de ir ao poço, ou Leopardi não sabia quando escreveu o seu poema.
E aqui deparamo-nos com a escolha mais genial e louca de Deus: a de perpetuar o encontro real com Cristo através de uma realidade humana, como aquela que Ele assumiu ao tornar-se homem. Aquele homem cansado, suado, sedento e solitário que a Samaritana encontrou no poço de Jacob é hoje a Igreja, o Corpo de Cristo, que atravessa a história na visibilidade de um povo em caminho. Um corpo humano habitado pelo Mistério. Como o define o Concílio: “a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” (Lumen gentium, 1). A união íntima com Deus significa ser amados; a unidade do género humano é o esplendor deste amor. A Igreja é, portanto, o lugar e o sinal no qual “amados, amamos”, isto é, a encarnação do Amor trinitário na família humana. Tudo na Igreja tem esta natureza e consistência de caridade e comunhão. Da liturgia à missão, da Eucaristia ao serviço humilde, tudo na Igreja é para se deixar amar por Deus e para amar todos como Ele nos ama. Esta é a obra que o Espírito realiza com o Pentecostes, perpetuando na história a presença encontrável de Cristo Redentor.
A Igreja, porém, deve manter-se consciente daquilo que é, a sua natureza e missão, não é para si mesma. A Igreja é “sinal e instrumento” da resposta de Deus à solidão imensa do coração humano. O grito de Leopardi, como o grito silencioso de tantos corações que vagueiam no deserto do nosso mundo, é o grito do Coração do Crucificado, que o Papa ecoa com a sua mais recente encíclica Dilexit nos: um grito que nos chama a não passar distraídos ao lado do coração do homem, incluindo o nosso, abandonado à sua solidão abissal. Tudo anseia pela comunhão com Cristo e em Cristo. Tudo anseia pelo Amor infinito que, amando-nos, nos torna capazes de amar. Amar porque amados é a missão da Igreja, é a sua vida e fecundidade. Nada é mais amigo do homem do que quem lhe permite o encontro e a comunhão com Deus, de quem é imagem viva. A Igreja tem, ou melhor, é esta missão, e se ela não encarna esta missão, é como se não existisse.
Sabem porque é que o meu bisavô Giovanni regressou à sua aldeia após três anos no deserto do Turquestão? Poderia ter lá ficado, como o seu irmão mais velho Cesare, que se casou com uma bela mulher turcomana e nunca mais voltou. Mas o meu bisavô voltou para acompanhar a casa o seu primo António, gravemente doente com febre amarela. O verdadeiro infinito não é o universo estrelado ou as planícies intermináveis da Ásia, muito menos a riqueza ou a beleza de uma mulher.
O verdadeiro infinito é o nosso coração quando se perde ao serviço das necessidades do outro e, assim, encontra e dá verdadeiramente Cristo na sua caridade. Então a solidão é vencida e o "eu" descobre que é imenso, amado e capaz de amar, como o Coração de Deus.
23 de Novembro de 2024
P. Mauro-Giuseppe Lepori OCist
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